A criação de deus como travão aos instintos
Uma obrigação para com
Deus: esta ideia foi porém o instrumento de tortura. Imaginou-se Deus
como um contraste dos seus próprios instintos animais (do homem) e
irresistíveis e deste modo transformou estes instintos em faltas para
com Deus, hostilidade, rebelião contra o «Senhor», «Pai» e «Princípio do
mundo», e colocando-se galantemente entre «Deus» e o «Diabo» negou a
Natureza para afirmar o real, o vivo, overdadeiro Deus, Deus santo, Deus
justo, Deus castigador, Deus sobrenatural, suplício infinito, inferno,
grandeza incomensurável do castigo e da falta. Há uma espécie de
demência da vontade nesta crueldade psíquica. Esta vontade de se achar
culpado e réprobo até ao infinito; esta vontade de ver-se castigado
eternamente; esta vontade de tornar funesto o profundo sentimento de
todas as coisas e de fechar a saída deste labirinto de ideias fixas;
esta vontade de erigir um ideal, o ideal de «Deus santo, santo, santo»,
para dar-se meçhor conta da própria indignidade absoluta... Oh, triste e
louca besta humana!A que imaginações contra natura, a que
paroxismo de demência, a que a bestialidade de ideia se deixa arrastar,
quando se lhe impede ser besta de acção!... Tudo isto é muito
interessante, mas quando se olha para o fundo deste abismo, sentem-se
vertigens de tristeza enervante. Não há dúvida de que isto é uma doença,
a mais terrível que tem havido entre os homens e aquele cujos ouvidos
sejam capazes de ouvir, nesta negra noite de tortura e de absurdo, o
grito de amor, o grito de êxtase e de desejo, o grito de redenção por
amor, será presa de horror invencível... Há tantas coisas no homem que
infudem espanto! Foi por tanto tempo a terra um asilo de dementes!
Friedrich Nietzsche, in 'A Genealogia da Moral'
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