domingo, 21 de agosto de 2011

O novo homem

O homem será feito em laboratório.
Será tão perfeito como no antigório.
Rirá como gente, beberá cerveja deliciadamente.
Caçará narceja e bicho do mato.
Jogará no bicho, tirará retrato com o maior capricho.
Usará bermuda e gola roulée.
Queimará arruda indo ao canjerê, e do não-objecto fará escultura.
Será neoconcreto se houver censura.
Ganhará dinheiro e muitos diplomas, fino cavalheiro em noventa idiomas.
Chegará a Marte em seu cavalinho de ir a toda parte mesmo sem caminho.
O homem será feito em laboratório muito mais perfeito do que no antigório.
Dispensa-se amor, ternura ou desejo.
Seja como for (até num bocejo) salta da retorta um senhor garoto.
Vai abrindo a porta com riso maroto: «Nove meses, eu? Nem nove minutos.»
Quem já concebeu melhores produtos?
A dor não preside sua gestação.
Seu nascer elide o sonho e a aflição.
Nascerá bonito? Corpo bem talhado?
Claro: não é mito, é planificado.
Nele, tudo exacto, medido, bem posto: o justo formato, o standard do rosto.
Duzentos modelos, todos atraentes. (Escolher, ao vê-los, nossos descendentes.)
Quer um sábio? Peça.
Ministro? Encomende.
Uma ficha impressa a todos atende.
Perdão: acabou-se a época dos pais.
Quem comia doce já não come mais.
Não chame de filho este ser diverso que pisa o ladrilho de outro universo.
Sua independência é total: sem marca de família, vence a lei do patriarca.
Liberto da herança de sangue ou de afecto, desconhece a aliança de avô com seu neto.
Pai: macromolécula; mãe: tubo de ensaio, e, per omnia secula, livre, papagaio, sem memória e sexo, feliz, por que não? pois rompeu o nexo da velha Criação, eis que o homem feito em laboratório sem qualquer defeito como no antigório, acabou com o Homem. 


Bem feito.

Carlos Drummond de Andrade, in 'Versiprosa'

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